Natureza Viva


Tuas mãos apoiadas em bengalas mentirosas não conseguiriam desvencilhar o gesto para romper essa espessa e invisível camada que te separa dele. Por um momento desejarás então acender a luz, dar uma gargalhada ridícula, acabar de vez com tudo isso, fácil fingir que tudo estaria bem, que nunca houve emoções, que não desejas tocá-lo, que o aceitas assim latejando amigo belo remoto, completamente independente de tua vontade e de todos esses teus informulados sentimentos. No momento seguinte, tão imediato que nascerá, gêmeo tardio, quase ao mesmo tempo que o anterior, desejarás depositar o cálice, apagar o cigarro e estender duas mãos limpas em direção a esse rosto que sequer te olha, absorvido na contemplação de sua própria paisagem interna. Mas indiferente à distância dele, quase violento, de repente queres violar com tua boca ardida de álcool e fumo essa outra boca a teu lado. Desejarás desvendar palmo a palmo esse corpo que há tanto tempo supões, com essa linguagem mesmo de história erótica para moças, até que tua língua tenha rompido todas as barreiras do medo e do nojo, subliterário e impudico continuas, até que tua boca voraz tenha bebido todos os líquidos, tuas narinas sugado todos os cheiros e, alquímico, os tenhas transmutado num só, o teu e o dele, juntos - luz apagada, clichê cinematográfico, peças brancas de roupa cintilando jogadas ao chão.

E desejá-lo assim, com todos os lugares-comuns do desejo, a esse outro tão íntimo que às vezes julgas desnecessário dizer alguma coisa, porque enganado supões que tu e ele vezenquando sejam um só, te encherá o corpo de uma força nova, como se uma poderosa energia brotasse de algum centro longínquo, há muito adormecido, todas as princesas de todos os contos de fada desfilam por tua cabeça, quem sabe dessa luz oculta, e é então que sentes claramente que ele não é tu e que tu não serás ele, esse ser, o outro, que mágico ou demoníaco, deliberado ou casual te inflama assim de tolos ardores juvenis, alucinando tua alma, que o delírio é tanto que até supões ter uma. Queres pedir a ele que simplesmente sendo, te mantenha nesse atormentado estado brilhante para que possas iluminá-lo também com teu toque, tua língua terna, a rija vara de condão de teu desejo. Mas ele nada sabe, nem saberá se permaneceres assim, temeroso de que uma palavra ou gesto desastrados seriam capazes de rasgar em pedaços essa trama onde te enleias cada vez mais sem remédio, emaranhado em ti e tuas ciladas, em tua viva emoção sintética a ponto de parecer real, emaranhado no desconhecido de dentro dele, o outro.

Caio F.

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